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A VIRTUDE DA DESOBEDIÊNCIA E OUTRAS MAÇONARIAS

Reflexões a partir do livro “Desobediência Civil” de Henry David Thoreau (1817–1862).
Desobediência é a insurgência de alguém, ou de um grupo, contra um poder. Desobediência civil é a rebelião (pacífica, de preferência) contra o poder do opressor. A desobediência de Thoreau caracteriza-se pela reação defensiva; ele só obedeceria ao governo que respeitasse o Direito. Thoreau, filósofo do transcendentalismo, ao lado de Ralph Waldo Emerson, da jornalista Margaret Fuller, do educador Amos Alcott, e dos ativistas Orestes Brownson, William Channing, Frederick Hedge e Theodore Parker, Thoreau assumiu cada átomo de liberdade pertencente aos homens e mulheres de todos os tempos. “Cada átomo que me pertence também pertence a ti”, (Walt Witman, Leaves of Grass). Ensinou o retorno a uma vida simples e cercada pela natureza em seu livro “Walden, a Vida nos Bosques”, autêntico hino à independência pessoal e manual de autossuficiência. Fez oposição à política do governo de seu país na guerra contra o México e ao regime escravagista. Negou-se a pagar impostos que ele considerava um financiamento da guerra e da escravidão. E foi preso.
Discute-se esse “direito” à desobediência civil, mas é impossível deter os manifestos libertários. Onde se situa o direito à Consciência? acima da lei ou subordinado a ela?
A desobediência civil não se confunde com as teses de Rousseau e Proudhon que negam o direito de uso da força por parte do Estado. Entretanto, ambos – a desobediência civil e o anarquismo – não significam caos nem desordem. O anarquismo postula um desenvolvimento social através do qual cada cidadão estrutura seu próprio juízo e legitima sua participação na sociedade.
A História está repleta desses desobedientes que contribuíram para o aperfeiçoamento da arte política.
Por exemplo, a tradição dos Quatro Coroados (ou Quatuor Coronati) nos remete aos quatro artífices cristãos do Século III que desobedeceram a Diocleciano I quando mandados esculpir uma estátua ao deus Esculápio, à sua imagem. Os quatro foram condenados por desobediência e condenados à morte. A Maçonaria brasileira quase não faz referência ao episódio dos Quatro Coroados ˗ provavelmente pela infeliz herança que nossa Ordem recebeu das Ordenações Afonsinas, Filipinas e Manuelinas do Reinado de Portugal, de 1495 a 1595, aproximadamente. Contudo, a história dos quatro mártires foi registrada desde o século XIV, no Poema Regius (ou Manuscrito Halliwell) considerado o mais antigo texto da maçonaria operativa. Nele se lê:
“Naqueles tempos, por meio da geometria, esse honesto ofício que é a maçonaria foi concebido e organizado por uma nobre assembleia de sábios […] O primeiro artigo da geometria diz: podemos confiar em um Mestre maçom pois ele é firme, sincero e verdadeiro […] como esses quatro mártires que no ofício foram considerados com grande honra. Eles eram os melhores maçons da Terra […]. O imperador tinha alta estima por esses nobres operários e ordenou-lhes que criassem uma estátua à sua imagem que seria venerada. Ele queria assim desviar o povo da lei de Cristo. Mas esses homens tinham fé na lei de Cristo e em seu ofício que não desejavam desonrar […]. Os quatro eram homens puros e sinceros e viviam segundo a Lei Divina, e não queriam de forma alguma criar ídolos […]. O imperador, irado, ordenou que fossem detidos e mantidos numa masmorra profunda. Quanto mais ele os detinha prisioneiros, mais eles viviam na graça do Cristo […]. Quando o imperador viu que era impotente, ordenou que os matassem […]”
O imperador Diocleciano viveu entre 284 a 305 de nossa era. A execução da pena imposta Quatro Coroados consistiu na perfuração de seus crânios, sob golpes de martelo, de espadas encimadas por coroas. Quando os restos mortais desses maçons foram descobertos, pelo Papa Melchiades, no 310 de nossa era, todos se assombraram com a cena dolorosa dos quatro esqueletos coroados através de espadas atravessando suas caveiras.
Essa história mantém todos os vestígios da obediência à Verdade colocada acima da obediência civil: I) o verdadeiro maçom despreza as aparências; não cultiva ambições e dispensa honrarias, particularmente o desejo de ocupar os primeiros lugares na fraternidade; II) o verdadeiro maçom não está obrigado a acatar ordens exageradas e contrárias à sua consciência, quando oriundas de pessoas que não as sabem cumprir; III) o verdadeiro maçom não levanta ídolos às personalidades antes de elevar, acima de tudo, a obediência à sua consciência; 4) o verdadeiro maçom mantém ocultos seus conhecimentos, mas não nega a essência da Arte Real às multidões carentes; IV) o verdadeiro maçom há de se conformar ao ter sua inteligência (o cérebro) ferida pelo poder (perfurada pela espada) porque a violência de seus opositores se transformará numa coroa que receberá na morte.(1)
Em 1884, nove maçons ingleses fundaram a primeira Loja de pesquisas do mundo em homenagem a esses patronos das artes da alvenaria e da escultura, denominando-a “Quatuor Coronati Lodge”, Nº 2076 da Grande Loja Unida da Inglaterra. O título Quatuor Coronati passou a designar os grupos maçônicos empenhados na tradição de jamais criarem outros ídolos em suas Lojas que não fossem a busca da verdade, a pureza e a sinceridade.
Outro exemplo foi Thomas Morus que se recusou a obedecer ao rei Henrique VIII quando ele rompeu com a Igreja Romana, proclamando-se líder da Igreja Anglicana. O Rei desobedeceu à Igreja; Thomas Morus desobedeceu ao Rei. Mas só Thomas Morus foi punido: teve a cabeça cortada na Torre de Londres em 6 de julho de 1535. O único obediente nessa história toda foi o carrasco que vibrou o machado no pescoço do filósofo. Thomas Morus teve apenas o tempo de gritar: “morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro.” Os carrascos são servidores muito obedientes. Muitos deles, antes de assumirem a honrosa função, foram bajuladores, ou seja – tiveram a cabeça corrompida pelo déspota e, em troca, receberam o ofício de cortar cabeças que não se podiam corromper. O cargo sempre foi bem pago e esses verdugos apresentavam-se no cadafalso com o rosto velado por um capuz negro… certamente para esconderem a vergonha.
Mais um exemplo: em 1773, o parlamento inglês deu de presente à Companhia das Índias Orientais o monopólio do comércio do chá. Revoltados, um grupo de comerciantes norte-americanos resolveu desobedecer. Segundo Edward Gair, os maçons da Loja de St. Andrew, liderados por Samuel Adams, e disfarçados de índios mohawks, invadiram os navios da Companhia e atiraram 350 caixas de chá na água (Boston Tea Party). Tremenda desobediência! – se tivessem aquecido a água a 76º centígrados (168.8 fahrenheit) e colocado açúcar, seria uma bebedeira grátis de bom english tea. Mas como o verdadeiro maçom não é dado a bebedeiras, eles comemoraram criando a nação norte-americana, os Estados Unidos; abraçaram-se e foram cumprir seus deveres profissionais e familiares.
Entre nós, a Inconfidência Mineira também desobedeceu a prescrição da Coroa portuguesa na administração da arrecadação do quinto (imposto cobrado sobre o ouro, correspondente a 20% do metal extraído). Não vou me alongar neste episódio que é por demais conhecido. Tiradentes não teve a cabeça decepada. Foi apenas enforcado e teve o corpo esquartejado pelas estradas das Minas Geraes.
Durante o holocausto nazista, as pessoas envolvidas no episódio alegaram “obediência à lei e ao governo de Hitler”. Pois é, deu no que deu.
Durante o alistamento para o Vietnã, muitos americanos praticaram a desobediência civil, apesar da coerção e ameaças por parte do governo. Cassius Clay, campeão dos pesos pesados, perdeu o título e foi impedido de atuar por três anos e meio por causa da teimosia em não guerrear no Vietnã – pancadaria, só no ringue.
Hoje levanta-se a questão do voto obrigatório que remonta à Grécia antiga com a lei de Sólon. Mesmo assim essa obrigação já foi negada por exclusão étnica (apartheid), exclusão de classes e exclusão de gênero (no Brasil, as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 1932 – ou seja: uma mulher que hoje tenha mais 80 anos, provavelmente não deve ter votado, por impedimento legal, em alguma fase de sua vida.
O voto é mais um direito do que uma obrigação. Não havendo candidatos merecedores do voto consciente seria lícito ao cidadão recusar-se a votar ou votar em branco?
Há uma diferença entre Lei e Direito – entre uma e outro, a Consciência deve optar pelo quê? Os juristas romanos diziam: “pro Jure ipse contra legem” (pelo direito ainda que contra a lei).
Todas estas questões teriam outros contornos se a sociedade ditasse um mínimo de leis e objetivasse um máximo de eficiência na realização do bem comum. Desafortunadamente vivemos a Era das Palavras. Fala-se muito, lê-se pouco e menos ainda são os comprometidos com a valorização do elemento humano nas instituições que se comprometeram com o bem da humanidade.
Apesar disso, a democracia caminha para um mínimo de governo possível onde os cidadãos possam ter mais governo de si mesmos.
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(1) Na mesma linha de pensamento sobre os escribas, por Joachim Jeremias em “Jerusalém no Tempo de Jesus”.

 

Fonte: JB News

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