“ De Isaque sairá a descendência que há de ter o teu nome. Mas também do filho da escrava farei um grande povo por ser do teu sangue.” Gênesis, 21:13.
De Abraão, um homem velho e sem potência,
E Sara, mulher estéril, pois tinha muita idade,
O Senhor, que é gestor de toda possibilidade,
Fez nascer Isaque, por sua divina providência.
A esse Isaque Deus deu grande saber e glória,
E a Ismael, o meio-irmão, nascido da egípcia,
O Senhor dotou com muita coragem e perícia;
Juntos eles fundaram nações de bela história.
Isaque deu origem ao heroico povo de Israel,
Que logo se tornaria a nação da competência;
Os árabes valentes são as sementes de Ismael.
Quem lê entenda, pois aqui existe sabedoria:
Um é o cérebro da terra – dele vem a ciência.
O outro é o coração–tem a fé como seu guia.
Abraão, o fundador de nações
Diz o texto bíblico: “Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai da tua terra, e da tua parentela, e da casa de teu pai, e vai para a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome, e tu serás uma bênção.”(Gênesis 12:1-2).
Depois, á vista das vicissitudes enfrentadas por Abrão na terra da promessa, Deus resolveu dar a ele para sempre toda a terra que ele pudesse medir com os olhos, bem como multiplicar a sua descendência como o “pó da terra”. Eis aí, nessa promessa feita ao agora Abraão, o cerne da reivindicação israelita sobre as terras palestinas, e o principal móvel da disputa milenar que ainda se trava naquela região.
Israel, segundo as crônicas bíblicas, teria um “direito divino” sobre essas terras, o que tornaria a sua luta uma verdadeira “guerra santa”, idéia essa que também é combatida pelos seus inimigos palestinos, para quem “eliminar para sempre Israel do concerto das nações”, é a vontade inalienável de Alá.
Assim, a saga de Abraão, como exposta na Bíblia, revela bem o intuito ideológico que os cronistas bíblicos quiseram lhe dar.
Na consistência temática e na continuidade histórica que o povo de Israel lhe deu, estão as raízes desse direito. E essa é a grande força desse livro, que até hoje continua sendo o maior monumento literário já produzido pela humanidade e o que mais influiu no pensamento humano até os dias de hoje.
Historiadores como Israel Finkelstein e Neil Archer Silbermam (A Bíblia Não Tinha Razão, Ed. Girafa, 2003), no entanto, argumentam que a religião monoteísta de Israel não nasceu antes da separação que o unificado reino de Israel sofreu após a morte de Salomão.
Na verdade, o monoteísmo dos israelitas só teria se consolidado século VII, no reinado do rei Josias, e seria durante sua gestão como rei de Judá que os cronistas da sua corte teriam terminado a compilação das histórias bíblicas, criando uma literatura épica e ideológica, com claras intenções de forjar para Israel uma origem nobre e um direito hereditário sobre as terras que haviam conquistado pela espada de Josué, primeiro, e depois por Saul e Davi.
Segundo esses historiadores, os cronistas da corte do rei Josias “criaram” uma história para Israel com claros propósitos ideológicos e políticos. O único problema é que, ao fazer de Abraão o “pai de multidões”, eles abriram também a possibilidade de que os demais povos, descendentes desse patriarca, viessem reivindicar parte da sua herança. Destarte, praticamente todos os povos do Oriente Médio poderiam, hoje, se dizer descendentes de Abraão. E as religiões que se originaram do Javismo confirmam esse fato, pois todas têm sua origem no monoteísmo hebraico.[1]
Árabes e Judeus
Ao contrário do que se pensa não há uma animosidade histórica entre árabes e judeus, embora a ideologia expressa nas crenças religiosas dos dois povos tenha concorrido para criar um ambiente de hostilidade entre eles. Na verdade , o conflito histórico existente na Palestina é entre os povos cananeus, hoje representado pelos palestinos, e Israel. A confusão, nesse caso, se estabelece pelo fato de os palestinos de hoje falarem a língua árabe e professarem a religião muçulmana, o que os aproxima dos povos árabes.
Na verdade, ao longo da história, judeus e árabes conviveram com mais facilidade do que judeus e cristãos e cristãos e muçulmanos. Essa realidade foi mais visível na época das cruzadas, por exemplo, quando os cristãos ganharam a inimizade tanto de árabes quanto de judeus, pois eles apareciam como invasores numa terra estranha, massacrando indistintamente tanto uns quanto outros. Hoje essa realidade mudou face á ocidentalização dos judeus, e ao fato de que a maioria do seu apoio financeiro, político e ideológico vir do ocidente, mas até a metade do século passado, a convivência entre árabes e judeus era até bem pacífica.
A questão ideológica
Na verdade, tantos judeus quanto árabes procuram dar á história de Abraão e seus dois filhos claros contornos ideológicos. No direito consuetudinário das tribos orientais é sempre do filho primogênito o direito de sucessão. Abraão não tinha um filho de sua esposa Sarai, por isso usou o expediente comum de tomar uma serva para gerar esse filho. Para os judeus, aceitar que seu povo tivesse origem no filho de uma escrava não era uma coisa que os honrasse muito. Daí o estratagema imaginado pelos cronistas bíblicos, de fazer Sarai, de forma milagrosa, ter um filho para que Israel não tivesse que amargar uma descendência espúria por parte de mãe.
Então Deus fez nascer Isaque, por divina providência. E isso subverteu a tradição legal, pois esse “truque” divino, que se assemelha á uma chicana jurídica, tirou dos árabes o seu legítimo direito á herança de Abraão.
Assim, a animosidade entre árabes e judeus teria começado já naqueles tempos, face ao conflito instaurado nas tendas do patriarca Abraão entre suas duas mulheres e seus respectivos filhos, cada um, por seu lado, reivindicando a herança do velho patriarca.
Sarai, a esposa legal de Abraão venceu a disputa e a concubina de Abraão, Agar, junto com seu filho Ismael, foram expulsos do acampamento hebreu. Para que o episódio não fosse contabilizado como uma grosseira injustiça, os cronistas bíblicos compensaram o deserdado Ismael com a geração dos povos do deserto (como os antigos israelitas chamavam os árabes) [2] Assim, embora árabes e israelitas fossem primos irmãos, esse episódio teria criado um profundo poço de descontentamento e animosidade entre os dois povos.
Essa animosidade se tornou ainda mais profunda quando os árabes adotaram a religião de Maomé, o Islã. Embora sustentando que o Islã é uma continuação do Javismo e que o Alcorão é um complemento da Toráh, e Maomé uma espécie de reencarnação de Moisés, o livro sagrado dos muçulmanos é um tanto ambíguo quanto á relação entre árabes e judeus.[3]Ao mesmo tempo que instrui os muçulmanos a tratar os judeus como irmãos, também ordena que os judeus que não se converterem ao Islã sejam tratados como inimigos.
A hostilidade entre judeus e árabes, entretanto, só se tornou violenta depois da Segunda Guerra Mundial, quando as Nações Unidas permitiram que uma leva de israelitas voltasse para a Palestina e lá começasse a fundar o novo estado de Israel, que havia sido abolido definitivamente pelos romanos em 135 da era cristã pelo Imperador Adriano.
Essa nova repatriação dos judeus (a primeira havia acontecido após a queda da Babilônia), provocou violenta reação dos povos que viviam na Palestina, povos estes de cultura árabe. A maioria das nações árabes protestou veementemente contra o fato de o povo de Israel voltar a ocupar porções da terra palestina. Originaram-se nesse fato os conflitos que ainda sacodem a Terra Santa nos dias de hoje. E á medida que Israel amplia seus domínios na região, esse problema mais se acentua.
Uma visão maçônica desse tema
A maçonaria tem raízes muito fortes na tradição de Israel. Na verdade, entendemos que a própria idéia que informa a prática da maçonaria é uma derivação do ideal que fundamentou a fundação de Israel como nação e o desenvolvimento de sua crença como povo eleito de Deus, nação modelo para todos os povos da terra.
Em nossa visão, o proto-estado de Israel, antes de se tornar um reino semelhante aos demais estados palestinos (após a instituição do reinado), pode ser considerado como a primeira vivência maçônica institucionalizada. Isso porque a tese que fundamentou o desenvolvimento do estado israelita está centrada numa idéia utópica que poderia ser realizada através da prática de uma fraternidade, ligada pelos laços do sangue e da religião, e pelo compartilhamento de uma forte tradição. Destarte, o conflito entre Isaque e Ismael pode ser visto, alegoricamente, como uma dissidência ocorrida dentro da Grande Loja de Israel.
Os laços da Maçonaria com a tradição de Israel já eram bem fortes entre os antigos Irmãos operativos, que viam em figuras da tradição israelita os seus mestres arcanos. Figuras bíblicas como Nenrode, o suposto construtor da Torre de Babel, Enoque, o patriarca que subiu ao céu sem conhecer a morte, Seth, o filho caçula de Adão, e principalmente o Rei Salomão e seu arquiteto construtor Hiram Abiff, já eram figuras importantes na tradição mais antiga da Arte Real.
Essa relação se tornou ainda mais forte na transição da maçonaria operativa para a especulativa, quando aos ritos maçônicos foram incorporados diversos motivos históricos inspirados na história de Israel, como a reconstrução de Jerusalém, os temas do Apocalipse, a organização do estado de Israel sobre o Rei Salomão e principalmente o Drama de Hiram, formidável alegoria que fundamenta a proposta iniciática da maçonaria.
Algumas lendas cultivadas principalmente no rito do Arco Real se referem á Abraão como verdadeiro mago, conhecedor de segredos arcanos obtidos junto aos hierofantes da Caldéia. Esses segredos, referentes principalmente á geometria e astrologia, teriam sido muito importantes no desenvolvimento da tradição israelita e foram incorporadas pela maçonaria.
Assim, a questão ideológica e racial que são levantadas em relação ao episódio de Abraão e seus dois filhos são irrelevantes para a maçonaria. A Maçonaria é uma organização ecumênica que não incentiva debates desse tipo. Para ela tanto a Bíblia quanto o Alcorão são livros inspirados, que revelam a vontade de Deus, expressa no pensamento dos profetas que os receberam. Já as ideologias são doutrinas desenvolvidas por pessoas e grupos que desejam fazer valer seus interesses particulares. Não cabe à Ordem maçônica mundial discutir quem tem razão nessa pendenga. Talvez ambos tenham, talvez ninguém tenha. O mais importante em tudo isso é a idéia inscrita na esperança que informou a criação do estado de Israel, ou seja, a idéia de que a humanidade deve ser um povo só, que se ligue pelos princípios da fraternidade e do amor á beleza. Esse, aliás, foi o que disse o Cavaleiro De Ransay em seu famoso discurso de 1738, quando ele começou a divulgar os ideais maçônicos por toda a Europa.
“Os homens não de distinguem essencialmente pelas diferentes línguas que falam, as roupas que usam, os países que ocupam, ou as dignidades com que são investidos.
O mundo todo não passa de uma república onde cada nação é uma família e cada indivíduo um filho. É para fazer reviver e espalhar estas máximas essenciais, emprestadas da natureza do homem que a nossa Sociedade foi inicialmente estabelecida.
Queremos reunir todos os homens de espírito esclarecido, maneiras gentis e humor agradável, não só pelo amor às belas artes, mas ainda mais pelos grandes princípios de virtude, ciência e religião, onde o interesse da Fraternidade se tornam aqueles de toda a raça humana, onde todas as nações podem recorrer a conhecimentos sólidos, e onde os habitantes de todos os reinos possam aprender a valorizar um ao outro, sem abrir mão de sua pátria.”[4]
A arte da maçonaria é informada, em seu núcleo científico, pelos fundamentos da Geometria Sagrada. Nos princípios que a informa, todas as formas se condensam em um princípio único. Assim, a esperança maçônica é que um dia todos os povos da terra se estreitem numa Irmandade, não importando a língua que falem nem as tradições que cultivem. A tolerância e o amor ao belo e ao bom que cada cultura possui serão mais fortes que quaisquer ideologias. Nesse dia, Isaque e Ismael se unirão num forte abraço fraterno, e talvez o mundo que eles inspiraram com suas ideologias possa, finalmente encontrar a paz.
[1][1] Javismo, ou a religião de Javé, ou Jeová em português. Javé era o deus dos pastores residentes no norte da Mesopotâmea, região de origem de Abraão.
[2] Os árabes, mercadores por excelência, habitantes de tendas no deserto, eram chamados pelos israelenses de ismaelitas.
[3] Judeus, os herdeiros do reino de Israel.
[4] Excerto publicado por Jean Palou- Maçonaria Simbólica e Iniciática- Ed.Pensamento, 1986.
Fonte: http://omalhete.blogspot.com.br/2018/03/arabes-e-judeus-uma-dissidencia-na-loja.html