A Escada de Jacob na sua dupla dimensão: intimista e simbólica
A ideia da ascensão gradual e penosa faz o mister do Escocismo como escola primeira da Arte Real. Está presente, também, nas grandes tradições do Ocidente como esforço individual para a procura de uma mais alta espiritualidade ou de um diálogo mais íntimo com Deus. Tem lugar também nos mistérios egípcios (1), gregos, escandinavos ou de Mitra e nos dos Cabalistas (2). Em todos estes mistérios e escolas filosóficas, a escada tem o sentido figurativo de uma realização espiritual que se alcança, degrau a degrau, vencendo as várias dificuldades e através da aprendizagem das várias virtudes.
Se a realização é espiritual e não meramente protocolar ou dignitária, ela exige uma entrega psicológica total, uma crença na capacidade de se alcançar o limiar desejado. Esse esforço é retribuído pela consciência de se atingir um grau de maior perfeição, luz reflectida do objecto glorificado: Deus, o Grande Geómetra, Buda, Cristo, Alá.
A percepção da progressão espiritual como processo faseado associa, por vezes, duas ideias erróneas: a de que chegados à etapa almejada, o estado de iluminação é total e sem mácula; e que alcançado esse estado não há retorno ou, para usar uma imagem trivial, não há queda pela escada abaixo. Possível representação do que aqui digo é a atitude de alguns Mestres que se pavoneiam nas assembleias maçónicas com uma profusão de medalhas e condecorações, à esquerda do seu tuxedo, sem que saibam exactamente o que elas significam.
A escada para cumprir efectivamente o seu simbolismo esotérico terá que ter um curso ascendente e um curso descendente e este sentido mais profundo e enigmático é dado, apenas, pela Escada de Kadosh. É errado contudo concluir-se que a escada surge no ritual associado aos altos graus do Escocismo. Ela aparece, antes, de forma velada, já que o Rito Escocês Antigo e Aceite não conserva uma figuração clara da escada nos quadros de loja dos três primeiros Graus. No 1° Grau, ela insinua-se abaixo das colunas do pórtico exterior do Templo sendo uma série de degraus de acesso; no 2° Grau, esses degraus passam para além das colunas do Templo; no 3° Grau, a escada está de todo ausente.
Não é assim no Rito de Emulação onde a Escada de Jacob aparece logo no 1° Grau, revelando vários degraus (sete ou mais) que constituem as virtudes morais que estimamos (3). Os três primeiros degraus representam, em regra, a Fé, a Esperança e a Caridade e a escada dirige-se para o céu e atinge nele sete estrelas (4). A Escada de Jacob assenta, segundo uma tradição que data da Maçonaria Inglesa do século XVIII, sobre o Livro da Lei Sagrada e sobe até ao Céu simbolizando o sonho bíblico de Jacob, filho de Isaac (5).
A Escada de Jacob é referida no Antigo Testamento no Livro de Génesis, Cap. 28, vs. 10-22, um dos cinco livros que os historiadores maçónicos acreditam ter sido escrito durante o cativeiro do povo judeu na Babilónia (6). A história é a seguinte: Jacob, filho mais novo de Isaac, usou um estratagema para receber a bênção do pai e ser designado como chefe da família em vez do primogénito Esaú como era tradição judaica. Este jurou matá-lo. Jacob recebeu ordem do pai para se dirigir a Pada-Aramm a casa de Betuel, seu avô e ali escolher esposa. No caminho, Isaac decidiu passar a noite num dado lugar e serviu-se de um das pedras do lugar como travesseiro. No sonho que teve viu uma escada apoiada na terra cuja extremidade tocava o Céu e ao longo da escada subiam e desciam mensageiros de Deus. Por cima da escada estava Deus que lhe disse: Sou o Senhor, Deus de Abraão e de Isaac. Esta terra em que te deitaste será tua se me adorares. No dia seguinte, Jacob usou a pedra que lhe servira de travesseiro e ergueu-a como monumento, chamando-lhe Betel e afirmando ser para ele, a partir daí, a casa de Deus.
O exemplo bíblico de Jacob revela o uso de um estratagema para alcançar uma vantagem ilegítima. Revela igualmente o sentido da Providência Divina sempre presente, indicando o caminho para Deus, o qual só se torna exequível através da prática da caridade, a mais sublime das virtudes. A escada torna-se etérea porque os degraus são níveis da consciência (7). Só com a iluminação da divindade o véu que cobre o topo da escada se dissipa e podemos lobrigar as sete estrelas ou os sete céus.
É trivial a ideia que ao atingir-se o Grau de Mestre o Maçom possui a iniciação integral e que os Altos Graus não lhe trarão nada de novo, pois nada são mais que desenvolvimentos dos graus anteriores. Este é o ponto de vista de Boucher ao afirmar que com a Mestria o Maçom passa por uma transformação total e profunda tendendo para o conhecimento do Absoluto, onde desaparecem as relatividades da existência material e do pensamento (8).
Trata-se de uma ideia despida de todo o fundamento. O Maçom pela mestria inicia uma nova etapa do seu aperfeiçoamento espiritual, da percepção do sagrado, caminho que como tudo o que é humano pode ter retrocessos. Até porque a necessidade de consolidar as Ordens Maçónicas tem facilitado a subida meteórica de obreiros com a evidente perda de qualidade final.
A mais correcta figuração desta dicotomia é dada pela Escada de Kadosh, a escada que aparece no 30° Grau do Escocismo. Trata-se de uma escada de dois braços, de dois lances, com sete degraus cada e com uma significância simbólica própria. Sobre o lado virado para a coluna do Norte encontra-se a indicação das sete artes liberais i.e. de baixo para cima: Matemática, Astronomia, Física, Química, Fisiologia, Psicologia, Sociologia, no lado virado para o Sul uma sequência de virtudes, i.e. de baixo para cima: Sinceridade, Paciência, Coragem, Prudência, Justiça, Tolerância, Devotamento. Sobre cada um dos lances estão marcadas duas inscrições hebraicas: Ahev Eloha (Amor a Deus) e Ahev Narabah ou Kerabh (Amor ao Próximo) (9). Outros autores dão-lhe outras designações (10). A escada encontra-se aberta em 45º.
Sabemos também que a escada de Kadosh encontra-se, em parte, figurada no 26º Grau do REAA [Príncipe da Mercê ou Escocês Trinitário] ao permitir o conhecimento das virtudes teológicas chegando-se ao Terceiro Céu, subindo-se para uma plataforma através de uma escada de três degraus pintados respectivamente de branco, verde e vermelho (11). René Guénon sublinha muito bem esta dimensão tradicional e esotérica da escada quando diz “a escada dos Kadosh (em hebraico “santo”) coloca a esfera de Saturno imediatamente acima da de Júpiter, chegando-se ao pé dessa escada pela Justiça e ao seu topo pela Fé, sendo esse símbolo da escada trazido para o Ocidente pelos Mistérios de Mitra” (12). O 30° Grau que durante muito tempo foi o último grau do Escocismo possui – regista ainda – elementos iniciáticos que remontam antes da fundação da Ordem do Templo (13).
O processo de ascensão espiritual idealizado pelo duplo lance das escadas é gradativo, aproximando o homem terrestre do Céu, dando-lhe uma condição purificada. Mas o simbolismo não ficaria completo se não se acrescentasse à condição ascendente uma condição descendente: o iniciado Kadosh, depois de concluir o seu percurso iniciático, deve ser capaz de transmitir os ensinamentos que aprendeu. Tem que chegar ao 30° Grau para poder descer ao plano da Terra, para cumprir a sua missão de Cavaleiro Místico. Deve tornar-se um educador, um iniciador, expor as concepções tradicionais àqueles que são capazes de as compreender ou seja: receber a mensagem e transmiti-la (14). Este é o verdadeiro sentido da via descendente e onde a sinceridade – a virtude que está no degrau cimeiro do primeiro lance da escada – o liberta da arrogância, do fanatismo, da condescendência consigo próprio. O objectivo ritualista é a procura da Luz, a Luz da Liberdade e o combate da opressão, seja qual for a forma que esta assuma.
Esta procura é só possível nos graus filosóficos pois só aí o Cavaleiro Escocês se liberta das limitações e dos equívocos de uma Mestria insuficiente, do obscurantismo que ainda limita a sua liberdade de consciência e das convenções. A razão é intuitiva: no julgamento da nossa alma, depois da nossa morte física, o Grande Criador do Universo julga-nos pela sinceridade que emprestámos às nossas acções em vida, por aquilo que fizemos desinteressadamente pelos outros, sendo despicienda a proclamação laudatória das nossas virtudes próprias. Contudo, a liberdade aqui representada não deve ser identificada como licenciosidade, já que esta implica excesso e o bom maçom deve viver em equilíbrio utilizando sabiamente os instrumentos que se habituou a usar.
Arnaldo M. A. G., Cav.’. Kad.’.
Conselho Kadosh Marquês de Pombal, Supremo Conselho dos Grandes Inspectores do Grau 33, Lisboa – Portugal
Notas:
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Os filósofos gregos, por exemplo, ensinavam que a subida titânica do homem é representada por uma escada e que o esforço do homem deve ser de combater os seus desejos pecaminosos e perseguir as virtudes e ao chegar ao degrau mais elevado da escada ele encontraria a trindade das virtudes clássicas da Fé, da Esperança e da Caridade. Ramachadran, R., “Jacob’s Ladder”, Sri Brhadeeswara Lodge Masonic Research Circle, in Masonicpaedia, www.masonicpadedia.org.
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A escada dos cabalistas é formada por dez Sefirotes ou Imanações de Deus. Os degraus estão em progressão ascendente e respeitam ao Reino, Fundação, Esplendor, Firmeza, Beleza, Justiça, Misericórdia, Inteligência, Sabedoria e Coroa. Mackey, Albert, Encyclopedia of Freemasonry, acedido via Masonic Dictionary, in www.masonicdictionary.com
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Ver por exemplo Harwood, Jeremy, Maçonaria, Editorial Estampa, Lisboa, 2006, pág. 91.
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A Fé é o primeiro passo na aproximação a Deus, a Esperança o estimulo para que a viagem continue e a Caridade a virtude sublime que decorre da emulação do amor de Deus pelos homens. Henderson, Kent, “A Journey through the Third Degree”, Pietre-Stone Review, in www.freemasons-freemasonry.com
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Como refere Julian Rees, citando o ritual inglês deste rito, in “Craft in Spirit”, Pietre-Stone Review, www.freemasons-freemasonry.com, o apoio da escada no Livro da Lei Sagrada acontece “porque pelos ensinamento contidos no Livro somos ensinados a acreditar nos ditames da Providência Divina que dá força á nossa fé”. O rito de emulação é um rito essencialmente cristão.
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Knight, Christopher, Lomas, Robert, The Hiram Key. Pharaohs, Freemasons and the Discovery of the Secret Scrolls of Jesus, Arrow, Londres, 1997, pp. 226-7.
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Willmshurst, Walter Leslie, The Masonic Initiation, Plumbstone, Edição Revista, 2007.
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Boucher, Jules, A Simbólica Maçónica, ou a Arte Real reeditada e corrigida de acordo com as regras da Simbólica Esotérica e Tradicional, Editora Pensamento, São Paulo, 1993, pág, 300.
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Bayard, Jean-Pierre, Symbolisme Maçonique Traditionnel, II. Haut-Grades et Rites Anglo-Saxons, Éditions Maçonniques de France, Paris, 1981, pp. 157 e 159.
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Da Camino, Rizzardo, Kadosh do 19º ao 30º, Madras Editora, São Paulo, 2007, pp. 207-208.
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As três cores representam, na verdade, as três virtudes teológicas eleitas pela Igreja e adoptadas pela Maçonaria: a fé, a esperança e a caridade. Contudo enquanto estas virtudes são vistas dentro dos ensinamentos da Igreja como expressão do dogma católica e da crença em Cristo elas têm na maçonaria um absoluto desprendimento de qualquer dogma considerando-se uma crença numa espiritualidade e divindade superior [que é a escolhida pelo maçom], a esperança numa vida melhor e a caridade como expressão de solidariedade para com o próximo, libertado do sentido “metálico” da oferenda para as obras eclesiásticas.
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René Guénon citado por Palou, Jean, A Franco-Maçonaria Simbólica e Iniciática, Editora Pensamento, São Paulo, 1995, pp. 116-7.
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Neste sentido, Palou, ibid, pág. 117.
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Bayard, ibid, pp, 164 e 168.
Fonte: http://www.maconaria.net