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Mistura à brasileira

Pode parecer exagero, mas não é. Para o escritor Luís Fernando Veríssimo, o prato da unidade nacional atesta a malandragem do nosso povo. No bom sentido. O feijão-com-arroz celebra uma poderosa parceria de aminoácidos que começou a ser feita por simples intuição no Brasil a partir do século 16. A lisina do primeiro precisa da metionina do segundo. Como em qualquer casamento, os parceiros se complementam. No caso, o que demorou foi para serem apresentados.

A origem do feijão é americana. Há duas hipóteses. Ele teria surgido 7 mil anos antes da era cristã, no México; ou ainda 3 mil anos antes disso, no Peru. Na Grécia e no Egito antigo, o feijão era cultivado como símbolo da vida. Os romanos antigos o usavam nas festas gastronômicas e até para pagar apostas. As ruínas de Tróia revelam evidências de que o feijão era o prato favorito dos guerreiros. E tudo indica que as guerras foram as principais responsáveis por sua disseminação.

No Brasil, já existia feijão antes da chegada dos portugueses, mas os índios não morriam de amores por essa leguminosa. Os negros escravizados também não. Como os portugueses gostavam mais de favas, supõe-se que foi o brasileiro que se tornou o grande consumidor de feijão. E por um simples motivo – além de nutritivo, o plantio é fácil e rápido. O feijão foi importante durante todo o Brasil colonial e imperial. A partir do século 17, tornou-se a força promotora de energia e passou a fazer parte de toda refeição.

E o arroz? O cereal pode ter surgido surgiu 2 mil anos antes da era cristã, na Indochina. Ou em berço africano, no Vale do Níger, ao redor de 1000 a.C, como descreve o historiador Henrique Carneiro: “Era uma gramínea de solo seco e foi a ação humana que a adaptou artificialmente, após 2 mil anos de cultivo, como uma planta semi-aquática. O arrozal aquático foi uma imensa conquista, desenvolvida na China entre o quinto e o primeiro séculos anteriores à era cristã, e que permitiu a ampliação da produção a ponto de transformá-lo na cultura de mais alta rentabilidade por hectare até a época moderna”, relata. O cereal foi usado não só para alimentação. As variedades especiais eram usadas como oferendas em cerimônias religiosas na Índia. Mas o árabe foi o grande responsável por sua disseminação.

Nas Américas, ele chegou com os espanhóis. Não se sabe ao certo se no Brasil já havia arroz cultivado antes da chegada dos portugueses. Mas os índios brasileiros não davam muita bola para ele.

Como conta Câmara Cascudo, “sozinho, ele não fartava ninguém, como a farinha seca ou o milho cozido. A forma típica era o arroz cozido na água e sal, úmido, compacto, quase um pirão espesso. O arroz solto, seco, aparecendo nos hotéis e residências abastadas foi resultado de fórmula posterior, urbana, chegando ao ‘arroz de branco’, elementar mas exigindo cuidados na fervura e atenções no ponto”.

Primeiro, então, veio a aproximação por afinidade – ambos, sozinhos, passavam a sensação de que faltava alguma coisa. Com o passar dos anos, descobriu-se que, associado aos cereais, o feijão fornece um suprimento ideal de carboidratos, fibras e, sobretudo, de proteínas. Segundo a nutricionista Patrícia Bertolucci, a mistura potencializa a síntese de proteínas essenciais para a reparação e construção de tecidos e para a produção de hormônios. Ou seja, com o tempo, descobriu-se que havia uma “química” poderosa nessa união.

Pena que, recentemente, essa relação ande meio desgastada. De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, o consumo de feijão caiu 31% entre 1974 e 2003. A nutricionista Sílvia Cozzolino cita a maior demora no preparo como uma das razões da queda em uma época onde tudo que é feito rapidamente ganha preferência. Mas e nos restaurantes de comida a quilo? Por que muita gente não pega feijão? Porque entre a carne e ele, as pessoas acabam optando pela primeira, supondo estar optando por uma melhor relação custo-benefício.

Além disso, a mania obsessiva de conquistar ou manter um corpo perfeito faz com que muita gente ache que arroz com feijão engorda. “Isso é um problema porque a mistura do feijão com arroz é rica em nutrientes”, diz a nutricionista Patrícia Gentil, técnica do ministério que participou da elaboração do Guia. Sua colega Sílvia concorda: “Basta fazer um prato equilibrado, com quantidades pequenas de vários tipos de alimento”. E falou em equilíbrio, falou arroz e feijão.

Arroz com… feijoada

A feijoada é fruto da fusão racial brasileira. Os negros preparavam as partes menos nobres do porco com o feijão com um jeito europeu de cozinhar. A técnica de se fazer feijoada é judaica (mas sem os apetrechos suínos). O historiador Henrique Carneiro conta que na Península Ibérica os judeus faziam um prato cozido com favas e carnes num fogo muito lento, aceso antes da noite de sexta-feira para poder durar durante todo o Sabá; a idéia era manter a comida quente sem precisar acender o fogo, proibido nesse dia.

Com base nessa técnica, os portugueses adoravam preparar um prato com legumes (couve, repolho, cenouras, batatas e nabos ), carnes (de vaca, paio, salsicha, presunto, toucinho, lombo) e feijão branco. Aos negros coube substituir o feijão branco pelo preto, retirar os legumes e… pronto. Basta acrescentar o arroz e desfrutar o primeiro prato genuinamente brasileiro.

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