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O mundo do chocolate não é uma vaquinha suíça, é uma floresta brasileira

Um dia, a família Aquim descobriu o verdadeiro chocolate e decidiu mostrar ao mundo qual é o seu sabor. E, ao mesmo tempo, resgatar uma história que é da América Latina. “Andávamos a contar ao mundo a história europeia do chocolate, mas não existe cacau na Europa, esta planta é nossa”.

Samantha Aquim fazia uns óptimos bombons. Tinha até ganho prémios. Mas um dia teve uma visita na sua loja no Leblon, Rio de Janeiro, que mudou a sua vida. Um homem, representante de produtores de cacau, vindo da Bahia, chegou à loja, provou o chocolate, elogiou, e no final perguntou: “Você conhece alguma fazenda de cacau?”. Samantha não conhecia nenhuma. “E não se sente um pouco incomodada com isso?”

“Daí a vinte dias, a minha irmã estava pisando pela primeira vez na vida fazendas de cacau”, conta Rodrigo Aquim, que nos recebe na actual loja deste projecto familiar. “Visitou várias, mas houve uma que lhe chamou particularmente a atenção, a fazenda Leolinda, em Ilhéus, onde teve um momento de revelação. A gente sente o gosto cheirando, e quando sentiu o cheiro do cacau fermentado ficou enlouquecida porque era um gosto que nunca tinha sentido em chocolate nenhum.”

Samantha voltou trazendo com ela o cacau. Com o outro irmão, Rafael, e a mãe, Luísa, sentaram-se a experimentá-lo de todas as formas. Rodrigo lembra-se da sua própria surpresa. “Quando o coloquei pela primeira vez na boca perguntei: Você tem a certeza de que é daqui que vem o chocolate?’”.

Foi o início de uma história que conduziu, há dois anos, à abertura desta loja na Rua Garcia d’Ávila, em Ipanema, que é ela própria, pela arquitectura tradicional de madeira e barro, uma homenagem às fazendas de cacau. E a este chocolate, em diferentes caixas que Rodrigo alinha à nossa frente, enquanto anuncia, sem hesitação: “A nossa missão é mudar a maneira como as pessoas comem chocolate.” Por isso, “esta é a única loja do mundo que não vende nenhum chocolate de leite ou branco”.

Estamos, portanto, no universo do cacau. “Se tivéssemos bombons de chocolate de leite venderíamos muito mais. Isto é para ver a nossa coragem”, continua Rodrigo. “Tudo o que se acrescenta são distracções em relação à essência do chocolate. Isto é um acto de fé, não é um negócio.”

A onda de Niemeyer

Voltemos ao momento de revelação vivido por Samantha na fazenda. “Um cozinheiro tem um arsenal de aromas e sabores armazenados, mas ela não achava aquilo que tinha encontrado na fazenda na ideia que tinha de chocolate. E voltou de lá decidida a encontrá-lo.” Provou mais de 600 dos melhores chocolates do mundo e fez inúmeras experiências. Quando achou que tinha algo de aproximado, levou as suas experiências à fazenda e deu-as a provar ao Dominguinhos, um dos funcionários mais antigos da Leolinda. “Ele disse: esse é o meu cacau, tem o gosto da minha vida. E ela soube que tinha acertado.”

A partir daí, os Aquim — a família é de origem libanesa mas também tem antepassados portugueses — esqueceram os bombons e dedicaram-se de corpo e alma ao cacau. Naquela que baptizaram como linha Q, os únicos ingredientes usados são pasta de cacau, manteiga de cacau e açúcar.

Olhamos para as embalagens na mesa à nossa frente: tutanos, pássaros de todas as cores, folhagem verde, frutos do cacau vermelhos, animais da floresta. Os Aquim criaram uma imagem que devolve o cacau ao seu lugar de origem. “O mundo do chocolate não é uma vaquinha suíça”, diz Rodrigo. “Nós trazemos para as embalagens os animais amazónicos. Antes, eu vendia uma história que não era a minha, era a história europeia do chocolate. Mas não existe cacau na Europa. A planta é nossa. É legítimo nós contarmos essa história.”

E foi assim, sem vaquinhas em paisagens suíças e com tons da Amazónia, que lançaram a linha Q, com chocolates que vão dos 55% de cacau aos 85% — este último só com pasta de cacau e açúcar, sem manteiga. Depois, lançaram-se na tarefa de explicar às pessoas como se deve provar o chocolate.

É isso que Rodrigo faz agora connosco, convidando-nos a fazer uma prova que começa pelo 85% e percorre toda a gama, até ao 55%, enquanto vai descrevendo o processo de transformação do fruto do cacaueiro. “O cacau é plantado dentro da floresta, porque o cacaueiro precisa da sombra de árvores mais altas do que ele. Ali não entram tractores, apenas burros. É um universo mágico.” Dá-se de seguida a fermentação, a secagem, a torra, a transformação em pasta.

Tudo é feito com enorme delicadeza, para preservar os aromas e as notas. Ao contrário do que acontece com a indústria, sublinha. “A indústria é escrava das vendas, de um sabor equalizado. Torra a altas temperaturas para uniformizar o sabor e depois coloca gordura, açúcar e essência de baunilha.”

Quando tinham em mãos o produto que achavam perfeito, quiseram torná-lo ainda mais perfeito — já não no sabor, mas na forma. Pediram então ao mais famoso arquitecto brasileiro, o entretanto falecido Oscar Niemeyer, que o moldasse ao seu gosto. O resultado foi uma onda de chocolate, que é o produto de maior luxo da linha Q. “Aos 102 anos, Niemeyer desenhou o seu primeiro produto de consumo”, diz Rodrigo, orgulhoso.

Depois criaram uma pinça, um instrumento para ritualizar o momento. “O homem relaciona-se com a comida através de rituais e isto tem um valor filosófico.” E é assim, com uma onda perfeita do mais puro chocolate, de sabores misteriosos e subtis, que os Aquim se propõem contar de novo a história do cacau, essa semente nascida nas sombras da floresta brasileira.

 

Imperium Rio de Janeiro, da lusofonia para o mundo

O chocolate Q está prestes a chegar a Portugal — será um dos produtos trabalhados pela Imperium Rio de Janeiro, uma empresa com sócios portugueses, brasileiros e um angolano, cujo objectivo é ajudar à comercialização de produtos com um alto nível de qualidade, para um mercado de luxo, tendo como base os países lusófonos.

O nome, explica Rui Gomes Araújo, um dos responsáveis deste projecto, remete para a época em que a corte portuguesa estava baseada no Rio de Janeiro e que o império irradiava daí (as palavras Rio de Janeiro no logótipo são retiradas de uma carta escrita por D. Pedro II, último imperador do Brasil, ao pai, quando tinha oito anos).

A opção tem a ver sobretudo com o facto de “Rio ser uma marca internacional”, o que era importante para uma empresa que se pretende internacional. “Uma das dificuldades que temos tido é explicar, sobretudo aos portugueses, que o império existiu e que era percepcionado como uma unidade. Quem está fora de Portugal, no Brasil por exemplo, sente muito mais essa ligação”, diz.

Para reforçar essa ideia da força de uma identidade lusófona, Rui recorre a uma edição antiga da Monocle, que traz na capa aquilo a que a revista chamou “Geração Lusofonia”, sublinhando precisamente o potencial dessas ligações entre os países do antigo império português. E sublinha: “Isto não é uma perspectiva neocolonial, o que queremos é olhar o mundo de língua portuguesa como uma unidade.” Além disso, para os países não-europeus, a grande vantagem de ter uma empresa com uma base em Lisboa é o acesso ao mercado europeu, explica.

O trabalho da Imperium começa com a identificação de produtos de topo nos vários países. Os chocolates Q são, diz Rui Gomes Araújo, um excelente exemplo de um produto brasileiro sofisticado, que não só parte de um ingrediente de qualidade, como soube trabalhar a imagem da forma que corresponde aos critérios estabelecidos pela Imperium.

Num caso como este, a empresa limita-se funcionar como uma plataforma que permitirá à marca chegar a outros mercados na Europa e fora dela (neste caso, por exemplo, Angola). Mas, atenção: “a razão” que os leva “a escolher um produto não é patriótica, é de mercado”. “Se virmos que não o conseguimos colocar nos espaços mais exigentes, não vale a pena”.

A Imperium começou já a trabalhar alguns produtos portugueses que, sendo de grande qualidade, precisavam de uma intervenção ao nível da imagem. Nestes casos, quando chegarem ao mercado, serão identificados com a marca Imperium. O mesmo acontecerá, adianta Rui Gomes Araújo, com produtos de Moçambique, São Tomé ou outras ex-colónias. Neste grupo, em que a Imperium funciona como uma espécie de placa giratória, há países com um perfil mais de consumidor, como o Brasil ou Angola, e outros com um perfil mais de fornecedor. Outro ponto importante para perceber o conceito da Imperium é a ideia de “autenticidade”. “Ao posicionar-se como marca ‘distribuidora’ de bens de luxo, está a criar, para uma elite, a oportunidade de absorver e viver diferentes experiências autênticas e exclusivas”, lê-se no material de apoio. Rui Gomes Araújo resume o espírito, que se pretende cosmopolita e virado para o mundo, de outra maneira: “Se fôssemos um estilo musical seríamos a bossa nova.”

Fonte: http://lifestyle.publico.pt

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