Fidélis é um senhor negro, pintor de letras, competente, alegre, cumpridor de suas obrigações. Somos amigos desde a juventude. Naqueles tempos, ele bebia muito. Mau costume que deixou para sua felicidade. Mas, naqueles tempos, ufa! Como bebia! Eu era abstêmio, meio naturista, e perguntava-lhe por que bebia. E ele me dizia que era para desintoxicar do veneno da tinta. “E o que é que você toma para se desintoxicar do veneno do álcool? ”
Um dia, deixou para nunca mais.
Uma de suas passagens pitorescas dessa época, que envolve personagem valiosa de nossa cultura, deu-se por volta de 1962. Devo acrescentar, que o Fidélis tocava gaita de boca, mais ou menos, e andava sempre com ela. Quando estava meio chumbado, soprava uma música enrolada que ia muito mal de ritmo e de melodia. Sóbrio, até que puxava um som legal.
Pois bem, numa noite daquele ano, eu circulava pelas ruas esburacadas das Tabocas, mal iluminadas, quando ouvi, ao longe, um som de gaita. Vinha de um barzinho cujo prédio ainda existe, na rua Mauá.
Aproximei-me e vi uma cena inesquecível.
Era uma roda de gente humilde, do bairro, cervejas na mesa, debaixo de uma luz frouxa que pendia do teto, no fim de um longo fio, ouvindo, num silêncio religioso, dois artistas: o Fidélis, certamente com algumas doses na cabeça, tocando um velho tango do Gardel, mais alguém, empertigado e solene, que declamava:
“Bêbado, pelas ruas da cidade…/ Olhando a vida, com indiferença,/ É, para ele, a humanidade imensa/ Tão desprezível quanto a falsidade!”/ “Lúcido, repudia a sociedade,/ Por reputa-la consumada ofensa/ À extensão da honra, da hombridade,/ Quando em seus erros vis ela não pensa.”/ “Lê Schopenhauer e Hartmann e Baudelaire/ Lê Rousseau, Kant, Spencer e Voltaire,/ E julga-se, afinal, um Prometeu!”/ “A justiça dos homens lhe é morta…/ Julga-a um Cérbero fiel, que guarda a porta/ Do Castelo que o vil metal ergueu!” (“Pessimismo”).
Prestei atenção. Era o nosso querido professor Celso Barbosa, sonetista parnasiano de versos escorreitos, português supimpa, métrica rigorosa, que declamava um de seus poemas. Sempre elegante, de terno e gravata, barbeado.
Conta o economista uberlandense, Alencar Soares de Freitas, em seu livro “Eu Também me Lembro” (Editora Thesaurus, Brasília, 1996) passagem semelhante que transcrevo na íntegra:
“A última vez que vi o professor Alfredo eu já tinha uns dezoito anos. Foi em um dos bordéis da cidade. Lá, antes da sala de dança, existiam vários cubículos – reservados – separados uns dos outros por divisórias baixas, onde se encontravam casais ou grupos de amigos. Quando passei por um deles, ouvi:
“Ainsi, toujours poussait vers de nouveaux rivages…”
Era “Le Lac”, de Lamartine, uma das poesias preferidas do professor.
Lá estava ele, todo de branco – linho 120 – recitando a poesia, em francês, para três prostitutas. Elas olhavam para ele com ar de troça, de deboche, que, na intensidade do seu sentimento e da sua inspiração, ele nem percebia. ”
Fonte: http://www.veneraveiscvt.com.br/